domingo, 29 de setembro de 2019

SUSAN SONTAG




  •  Traduzi este artigo publicado no site do jornal francês Libération e acrescentei algumas notas no rodapé,para melhor compreensão do texto

Diários e anotações revelam juventude ávida de liberdade
   por ALICE KAPLAN, historiadora americana


***

Susan Sontag, figura importante da intelligensia novaiorquina,sempre  foi muito criticada por ficar em cima do muro quando eclodiram  os movimentos pelos direitos dos gays. 
Conhecida pelas opiniões firmes sobre a guerra do Vietnan, o 11 de setembro,a Bósnia,Leni Riefenstahl e Roland Barthes, nada declarou sobre sua vida privada .
Oito anos após a morte,  esta porta se abre.

O filho David Rieff  preferiu tomar a iniciativa de mandar editar, sem qualquer restrição, os  diários que haviam sido legados à UCLA-Universidade da Califórnia Los Angeles.
 Num prefácio sóbrio e emocionante,decidiu expor toda a crueza que eles revelam sobre a personalidade da mãe.

O primeiro volume (1947-1963)- que cobre o período da adolescência até a publicação da primeira obra-foi avaliado como surpreendente revelação da vulnerabilidade da personalidade sempre tão segura.
O charme desses diários,muito bem traduzidos por Anne Wicke,é mostrar o papel decisivo que a França teve na vida da então jovem escritora.
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Susan Sontag  nasceu  Susan Rosenblatt em New York (1933),  com o país em plena crise econômica pós crash da Bolsa,  .
O pai  era comerciante de peles e morreu durante uma viagem à China quando ela tinha 5 anos.
A mãe mudou-se com a família para o Arizona e,depois do segundo casamento com o Capitão Sontag,todos foram para Los Angeles.

Começou a escrever os diários com 14 anos: angústias,resoluções,lista de livros que desejava ler e  assuntos que os filhos nunca desejam saber sobre os pais :bloqueios sexuais,pouca higiene e alternância de masoquismo e crueldade.

Precisamos situá-la em 1947, leitora assídua  de Gide e de Rilke na North Hollywood High School, em plena era do  rock’n roll e dos cinemas drive-in.

Com a  mente nos clássicos e os olhos direcionados para a Europa,  já estava adiante de seu tempo e de seu meio.
Menina prodígio,os  15 anos,  deixou definitivamente a família e se transferiu para a UCLA , depois Berkeley, depois para a Universidade de Chicago e,aos 18 anos, já estava diplomada.
 ***

  Durante um verão em Berkeley, conheceu   "H" (1),pessoa assim chamada no diário editado.
Nos primeiros textos eufóricos,ela compreende que com "H" podia viver suas paixões sexuais e que não estava condenada apenas a escrever e fazer seu trabalho de bibliotecária.

31 de maio de 1949- "Tudo começa agora,me sinto renascer",escreve Susan.Seu diário fala de noites de bebedeiras, do êxtase da entrega sexual com "H"
A  roda viva em que sua vida ia se transformar provocou uma advertência de alguns amigos de San Francisco : ' A única chance de ser normal é  parar tudo agora..Mais mulheres.. mais bares..se você não parar imediatamente..."
Tentou experimentar alguns rapazes na Califórnia e notou, com uma mistura de tristeza e preocupação, que a bissexualidade  não era possível, ela se conhecia bem.

O golpe teatral ficou registrado numa única linha : "2 de dezembro de 1950- Na noite passada -ou,talvez esta manhã bem cedo,fiquei noiva de Philip Rieff.»

Três meses depois,em Chicago,  aconteceu o casamento com seu professor de Sociologia,intelectual judeu  com modos bem oxfordianos.
Depois de terminado o casamento,ela assim o definiu; "Era uma pessoa que sangrava emocionalmente".
Tudo que era intenso em Susan Sontag  era  "pálido e limpo" no marido.

Que diferença entre a feliz declaração sáfica em San Francisco e a união com Rieff em Chicago!

O diário  não revela se o casamento foi um meio de ascenção social e nem se ela precisaria de um companheiro masculino para ajudar nos estudos.
Também não explica se a intensidade do compartilhamento intelectual compensava, em parte, a falta da paixão sexual.
Também não conta se era bom ser tão adorada, há apenas esta frase "Eu me caso com Philip  com total consciência + o medo do meu desejo de autodrestruição "
 ***

Tamanha concisão poderia surpreender, vinda de uma escritora que se analisa o tempo todo, se bem que -tanto nos diários como na vida- as decisões mais importantes continuam sem  explicação.
Enquanto o marido lecionava em Brandels, Sontag preparava deu doutorado em Filosofia em Harvard.
O filho do casal nasceu em  1952, quando ela obteve uma bolsa em  Oxford,para continuar os estudos das  «pressuposições metafísicas da Ética".
 Houve ua negociação com os avós paternos, que cuidaram do menino durante sua ausência.

Aperitivos anisados

 Estava na Inglaterra,mas sonhava com a França.
Durante todo o tempo em que seguiu os  maravilhosos cursos de J.L. Austin sobre Filosofia da Linguagem,garimpava o catálogo telefônico tentando ganhar entrada para os restaurantes universitários de Paris e encontrar uma listagem  das  diferentes marcas dos aperitivos de anis.
Enquanto Austin explicava,Sontag preparava sua nova vida: "Um Pernod. Pernod está para a França como Coca Cola para os Estados Unidos"'
 ***
Por que  abandonar a Inglaterra e os planos de Doutorado?
Simples: "H" deixou Berkeley e foi para Paris.
Passam o Natal juntas e Sontag fica mais oito meses numa relação intensa no plano sexual, dolorosa e masoquista,no papel da suplicante e sempre escondida e criticada,morrendo de medo de ser abandonada.
 O sofrimento parece ter ficado restrito ao espaço do quarto porque, durante este ano parisiense -quando passa pouquíssimo tempo na Sorbonne-,as reflexões culturais no diário se tornam ais profundas e suas análises muito bem embasadas.
                                      


                                    1958


Um grande mistério ronda a estadia de Susan Sontag em Paris, no ano de 1958.
Mesmo sendo levadas em conta a juventude, a obssessão amorosa e sua relativa ignorância sobre a sociedade francesa, é impressionante como  ela, que se tornou uma crítica feroz da política mundial não enha feito nenhuma alusão, no diário,ao fato da França estar vivendo naquele momento a um passo da guerra civil

Fevereiro de 1958

Sontag assiste peças de  Pirandello e Brecht, lê Carson McCullers, bebe  nos bares TournonMonaco e no Deux Magots.
Num francês rudimentar, constrói listas de expressões por tema (o amor, as crianças,as discussões nos cafés) que não estão no volume publicado pelo filho.
Mesmo com um mínimo conhecimento da língua,não poderia ignorar os fatos que se desenrolavam diante dela.
A alguns passos do quarto de "H" no Boulevard  Saint-Germain, o poeta  Allen Ginsberg, morando na rua Gît-le-Cœur, contava nas cartas ao pai as manifestações, as bombas que explodiam e a polícia nas ruas com suas sirenes. 


Milk Bar. 

« Parar de reservar esse diário exclusivamente paraa  cronologia de minha história com H! ",escreve  no dia 24 de março.Mas não faz nenhuma menção a   Djamila Bouhired (2), ao processo que se desenrolava nesse momento e a desta jovem prisão por haver  colocado uma bomba  no  Milk Bar  em Alger. 

Bouhired, dois anos mais nova  que Sontag, igualmente bela com  mesmos cabelos negros e ollhar dolorido, estava nas manchetes do   Herald Tribune, do France-Soir e do Figaro, apelando à consciência política de todos que a viam.

Expatriados

17 de  maio de 1958- A França estava sob lei marcial e a ameaça de uma guerra civil entre partidários da independencia argelina e os anti-independência era o assunto de todoas as conversacões (3).

Paris Herald Tribune  recebeu uma avalanche de chamadas telefônicas de expatriadoe em pânico e os diplomatas examinavam a possibilidade de mandar de volta todos os americanos residentes na França.Na  maior parte do tempo ela escreve notas de viagem .Partiu com  "H"  , no momento mais violento do pânico. 
O diário  nada revela a este respeito. 
 «Apreciar uma nova cidade é como apreciar um novo vinho"


Em julho,a futura romancista descreve as pressões exteriores que chegam do marido.:
«P. me manda cartas cheias de ódio, de desespero e bons conselhos.Ele fala de meu crime, minha loucura, de minha estupidez e de minha complacência comigo mesma"
A correspondência não está nos arquivos da UCLA,mas é pouco provável que ela tenha podido responder, devido ao momento político conturbado da Quarta República na França.


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Em outubro, quando uma nova Constituição estabeleceu a Quinta República,Susan Sontag voltou a Nova York,para recuperar a liberdade que Paris lhe tinha negado,.pediu o divórcio e começou uma longa batalha pela guarda do filho.

Por poucos meses perdeu a estreia do filme Les Amants  de Louis Malle,contando o escândalo causado por uma mulher que abandona marido e filhos pequenos para viver  uma aventura extraconjugal.
Foi exatamente o  seu procedimento,só que o marido havia sido avisado. Assim como as heroínas da Nouvelle Vague,viveu seu momento mítico em 1958,fora do tempo e do espaço político .
A força e a debilidade de seus diários de juventude nos fazem vivenciar aquele distante presente feito de sentimentos extremos e de experiências individuais.

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Notas

1- "H"  (foto)
Harriet Sohmers,  depois Zwerling (1928 -)  escritore modelo.

Viveu em Paris nos anos 50, como parte de um grupo de boêmios centrados em torno de James Baldwin, que fundou uma revista chamada Nova História.Em 1959,  foi para Nova York e participou da cena literária , enquanto trabalhava como modelo nu para os pintores mais importantes da cidade.   
Em 1963, ela se casou com o oficial da marinha mercante e boêmio Louis Zwerling e teve um filho, Milo, músico. Em 2003,  saiu uma coleção de seus escritos, "Notas de um modelo nu e outras histórias" 

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 2 -Djamila Bouhired

Nascida em Argel em 1935,  trabalhava como costureira, quando foi recrutada para a guerrilha. Durante os ataques da “Batalha de Argel”, foi ela quem colocou a bomba conhecida por “Milk-Bar” em 30 de Setembro de 1956. Onze pessoas morreram e cinco ficaram feridas na explosão. Na emboscada que se seguiu, Bouhired (foto) foi ferida e presa. Depois de ter sido torturada durante 17 dias, foi considerada culpada de terrorismo e condenada à morte. O seu advogado Jacques Vergès, impediu a  execução com uma defesa implacável e combativa. A campanha mediática que ele orquestrou, transformou Djamila numa figura emblemática da resistência anticolonialista em todo o mundo, salvando a sua vida. Após a sua libertação, ela e Vergès casaram. Tiveram dois filhos.
Djamila retirou-se da vida política após a guerra e não teve qualquer papel na construção da Argélia independente.

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3-A guerra da Argélia (1954-1962)

Movimento de luta pela independência da Argélia, então território francês. Caracterizou-se por ataques de guerrilha e atos de violência contra civis - perpetrados tanto pelo exército e colonos franceses (os "pied-noirs") quanto pela Frente de Libertação Nacionall (Front de Libération Nationale - FLN) e outros grupos argelinos pró-independência.
O governo francês do tempo considerava criminoso ou terrorista todo ato de violência cometido por argelinos contra franceses, inclusive militares.
Estima-se que um milhão de muçulmanos e vinte mil franceses morreram na luta.
Alguns franceses, como o antigo guerrilheiro antinazista e advogado Jacques Vergès, compararam a Resistência francesa à ocupação nazi com a resistência argelina à ocupação francesa.

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Susan em Sevilha, 1958

Vivendo um grande amor transgressor e viajando em busca de liberdade e realização, a jovem Susan passou ao largo dos acontecimentos políticos e das mudanças sociais  que aconteciam, literalmente, ao alcance de seu olhar.
Futuramente,o lapso seria mais do que preenchido como posicionamento militante.

Como disse  Oscar Wilde,"só quem um dia perdeu a cabeça sabe raciocinar"



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