Olhar acadêmico focaliza a menor das minorias
Zapeando sem compromisso, achei uma pérola rara para observação sócio-antropológica: numa emissão Fiocruz pela NBR estavam sendo entrevistados o sociólogo sueco Don Kulick (foto)e a antropóloga Miriam Goldenberg (autora,entre outras obras, de "A Outra: um Estudo Antropológico sobre a Identidade da Amante do Homem Casado", 1990, Editora Revan).
Falavam sobre a trajetória do primeiro, que dividiu seu tempo com treze travestis, durante um ano, alugando um quarto de casa de cômodos no Pelourinho, Salvador, Bahia.
Falavam, também ,do livro que resultou dessa experiência: "Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil" (tradução de Cesar Gordon, Editora Fiocruz, 2008)
A pesquisa de campo da tese foi financiada pelo Conselho Sueco para a Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. Don agradece também aos militantes baianos, que o levaram até Keila Simpson, a quem é dedicado o livro. Keila é maranhense, ex-presidente da ANTRA, associação que congrega outras travestis.
Ela serviu de professora de português e parceira de trabalho, tornando-se ao final, amiga pessoal de Don. O livro retrata o dia a dia ,entre 1996 e 1997, do grupo que serviu como base do trabalho acadêmico. Os personagens são observados quando se preparam para sair, enquanto esperam seus clientes e na volta para casa - quando explicam as particularidades de cada programa.
O texto mergulha fundo no imaginário das travestis e mostra detalhes comoventes da vida da que chamo menor das minorias. São seres humanos tão discriminados que mesmo a comunidade acadêmica,tão ávida de temas, lhes dedica pouquíssimas teses e trabalhos.
A noite de autógrafos da edição brasileira aconteceu no IFCS -Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, aqui no Rio.
Curiosidade explícita
Nesses meus muitos anos de militância pelos direitos humanos em geral e pela não homofobia em qualquer nível em particular,uma curiosidade - nem sempre apenas latente – está no ar quando, em palestras e reuniões sobre o tema , surgem as famosas perguntas sobre a diferença entre transexual e travesti.
Os sociólogos "da antiga" associavam uma espécie de conforto social ao uso de indumentária feminina – comportamento que julgavam também conectados com homossexualidade e fetichismo.
A legendária monografia de Magnus Hirschfeld (1868-1935) publicada em 1910, define o travestismo como uma escolha particular.
A partir daí, ensaios começaram a ser publicados em revistas médicas e aumentaram a visibilidade do tema.
A tese de Benjamin
Em 1954, o psiquiatra norte-americano Harry Benjamin (1885-1986) procurou estabelecer a diferença: enquanto o transexual não aceita seu sexo biológico, tentando adequá-lo ao sexo emocional, o travesti aceita e convive com as possibilidades de seu corpo, ficando assim mais em contato com sua sexualidade.
Os órgãos genitais são o centro de seu prazer, como para qualquer outro homem. Os estudos de Benjamin sugeriam, inclusive, que um travesti não é necessariamente um homossexual.
Se o homem hétero que aprecia o travestismo tiver uma companheira tolerante - o que é muito raro - pode resolver suas necessidades psicológicas dentro casa mesmo.
Com freqüência maior que se imagina, muitos travestis, casados ou solteiros, estão circulando por aí vestindo lingerie feminina, por baixo de seus ternos e gravatas. Para um transformista profissional, entretanto, usar roupas femininas faz parte do trabalho
.
A contribuição de Don Kulilck
Enquanto lia o livro, esqueci que era uma tese acadêmica.
O texto me envolveu como o de qualquer bom romance. Falando pouco ou nada de português, o autor observava com muito mais requinte as posturas corporais e percebia como transcorriam as relacões afetivas.
A interação com o grupo foi completa. Don conta que Keila tinha grande orgulho em levá-lo de braços dados à padaria próxima para que todos pensassem que ela tinha arranjado um gringo.
Ele comenta a opressão dos travestis pelo Estado naquele período, a relacão com a Aids e a introdução no Brasil do silicone que começava a ser utilizado indiscriminadamente e viria a trazer tantas tragédias.
A EDITORA FIOCRUZ está de parabéns e os que militam por um Brasil sem xenofobia e respeitoso às diversidades, igualmente.
Além das informações preciosas que contém, o livro é um charme: o acabamento gráfico da capa é primoroso e o marcador, super criativo, é uma fitinha do Bonfim estilizada.
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